Crônica – O Beato, o Malandro e a Mudança

Diz a lenda que uma boa história surge quando menos esperamos e em momentos que nunca imaginamos. Esta história não foi vivida por mim, mas a mim repassada num lugar inusitado, ou seja, na hora certa, no lugar correto e no momento perfeito.

Noite dessas, a espera de uma Piriguete atrasada, divido o balcão de um bar com uma pessoa distinta, mas que se apresentava inquieta. Notava-se que a pessoa queria falar, mas não sabia para quem e pelo jeito fui o escolhido. “O Bar é o local ideal para se ouvir, viver e contar uma história, você não acha???”, perguntou-me a inquieta pessoa. Respondi que sim e continuei a minha espera pela donzela apaixonada por um espelho e em constante briga com o guarda roupa. “Não sei se estás disposto, mas vou te contar uma história. Aliás preciso contar esta história para alguém!!!”. Era nítida a ansiedade do meu vizinho de balcão.

“Vou te contar a história do Beato, do Malandro e da Mudança”, exclamou o narrador. Estava eu entre meio sem vontade de ouvir mas com o estigma da dúvida sempre alerta. “Mudança, quem é a mudança???”, perguntei. “A história é sobre o Beato e o Malandro, a Mudança foi a consequência!!!”, afirmou o vizinho. Após entender o assunto e já imaginando que minha noite não teria o desfecho idealizado, resolvi pedir mais uma bebida e ouvir do parceiro de Bar a sua história, que passo a contar agora.

Era um lugarejo bonito, de porte médio, situado entre a montanha e o mar, de Presidente Venceslau a Poços de Caldas. O povo era hospitaleiro e vivia uma época de cada vez. As noites mais quentes eram mais movimentadas e mesmo pensando em trazer indústrias eram nestas noites que o povoado mais ficava descontrolado. Para se ter uma ideia de como era o lugar, o “Bolo 37”, feito numa vila de casas com 37 ingredientes ficou famoso por quatro anos.

Conta a história que naquelas paragens havia um Beato que ficou por lá por pelo menos 10 anos e na Casa de Reza, como era chamado o local, fez muito por ela. Reformou a casa, fez um puxadinho para proteger os cavalos, um galpão para estacionar as carroças e que servia para as festas de Nosso Senhor e uma casinha para guardar os donativos do culto, que tinha até uma bandinha, que animava as orações e deixava o sermão ainda mais bonito.

É aí que entra o Malandro, que tocava na bandinha e cuidava de algumas choupanas existentes no povoado. O Malandro tinha como incumbência pintar, reformar, pagar os tributos e os empregados que nela ajudavam. Até aí não havia problema, pois existiam vários com a mesma função no lugarejo. O que ninguém imaginava era que o Malandro fizesse tanta malandragem assim. Quando tinha uma reforma pegava as moedas de prata de uma vez do senhorio e acertava com o pedreiro pagar em 10 vezes. Se um casebre precisava de pintura recebia todo o valor em moedas de prata, parcelava a tinta em três vezes e o pintor em cinco e obviamente, não pagava ninguém, ficando com as moedas.

A situação chegou a tal ponto que onde trabalhava não podia mais ficar. Dizem até que em certo momento entregou os cavalos e a carroça que tinha para quem trabalhava, pois caso contrário seria entregue ao Homem da Lei. Montou o seu próprio negócio de cuidar dos casebres e edículas, mantendo o mesmo golpe.

Esta situação despertou a atenção do Beato, que todo domingo via o Malandro no culto. Homem religioso, forte como Ébano decidiu ajudar o Malandro, indicando local para o seu estabelecimento, dando de comer e pagando o seu cartão de compras. Na Casa de Reza todo mundo desconfiava de onde vinha tamanha bondade, pois mesmo sendo um homem do Senhor, era caridade demais.

Com o tempo todo mundo acabou por saber o motivo de tanta fraternidade. A companheira do Malandro havia despertado o desejo contido e naturalmente reprimido de todo Beato. Vez e outra os comentários eram de que o Beato e a companheira do Malandro se tornavam mais próximos, mais cúmplices e até um beijo teria havido e denunciado pela filha do Malandro e sua companheira e esta por sua vez teria replicado, alegando má fé da cria. O falatório continuou ainda mais efervescente, ainda mais quando se descobriu que a companheira, quando solteira, teria surrupiado moedas de ouro de um fazedor de livros. Nessas horas vale o ditado; “Diz-me com quem andas e eu te direi quem és!!!”.

Com o falatório cada vez mais inflamado e crescente o Pastor decidiu convocar todos que haviam falado ou estariam sabendo para resolver esta questão. No dia do encontro, sem que ninguém entendesse, mas que todos teriam compreendido, aqueles que primeiro souberam ou comentaram sobre as façanhas do Beato, do Malandro e sua Companheira não compareceram e o Pastor, entre alegre e tranquilo, nada podia fazer e pediu que os comentários cessassem.

Imaginava que este seria o desfecho da história. Estava eu enganado. O narrador conta que ainda havia muito, ou melhor, algo ainda mais interessante. Se antes estava descompromissado agora estava entretido com a história e nem queria mais saber da donzela que não havia chegado.

Conta o narrador que para reformar e ampliar a Casa da Reza, o Beato apelou aos moradores do lugarejo para ajudar nas obras, através da campanha intitulada ‘Sou Amigo do Beato’, onde várias pessoas do lugarejo pagariam durante quase um ano, com algumas moedas de ouro para o bem de Nosso Senhor e a construção de sua casa no povoado. Tudo ia bem, aliás, ia bem demais, pois o povo ajudava todo mês e não sendo todos a pagar, não se reclamava dos faltosos e muito menos eram cobrados. Os moradores mais afoitos pagavam integralmente e diretamente ao Beato, que nem sempre informava o pagamento e dava baixa no amigo pagador. Não se sabe ao certo se este procedimento era do Beato ou se teria aprendido com o amigo e parceiro Malandro. Tudo isso durou uns três anos, até que o Pastor, cansado dos acontecimentos ou decidido a ampliar os horizontes usando o nome de Nosso Senhor, mudou o Beato para outras paragens (Foi nesta hora que entendi o porquê da Mudança na história), o que teria tranquilizado o lugarejo. Já em outras terras, ao perguntarem sobre o período em que ficou no sítio anterior, o Beato dizia que ao mudar, “Uma página da vida também se muda, se torna passado”, encerrou o narrador a história com esta citação.

Disse que era uma história interessante e ele respondeu que poderia ocorrer em qualquer lugar, até no povoado onde eu morasse. Sinceramente fiquei desconfiado e pensei se o narrador andou pelo meu lugarejo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

pesquisa

Queremos conhecer você que é leitor do Contra & Verso, para isto gostaríamos de saber mais sobre você.

Populares

Patrocinado

redes sociais

Pular para o conteúdo