E o tempo passou. Muito tempo se passou desde a última vez que retratamos a vida miserável de Cretina em Misericórdia dos Pinheiros, cidade localizada entre Uruguaiana, no Rio Grande do Sul e Tabatinga, no estado do Amazonas. O Feudo em si nada mudou, o dono do Feudo continuava o mesmo, assim como os sonhos de Cretina e seu filho Idiota, que transformaram o velho Feudo numa bagunça só, resultando no triste fim de Cretina, no Irajá.
Com o passar dos dias a vida era a mesma em Misericórdia dos Pinheiros, rodeada por Montanhas de um lado e pelo Rio CaradePau do outro, onde se pescavam gordos Robalos, Traíras e Peixes Palhaço, o maior divertimento de Cretina era admirar as Montanhas durante o dia e o fluxo do rio durante a noite. Mas como no conto anterior, Cretina estava disposta a mudar isso. Cretina queria o seu lugar na Casa Maior do Feudo, ou melhor, queria sentir-se a dona do Feudo e a senhora da Casa Maior, colocando seu filho Idiota como o novo senhor do lugarejo.
Avassaladora, esperta, dinâmica e extremamente esquizofrênica, Cretina arquitetava a cada dia, a cada mudança de lua, a cada troca de folhagens na Montanha, o seu sonho de tornar-se a primeira mãe do Feudo, sonho esse que iria tirá-la da pobreza material e de espírito que adubava a sua vida miserável.
Tudo era feito com o intuito de levar seu filho a Casa Maior do Feudo, que ficava no lugar mais alto do lugarejo, o lugar mais almejado e invejado por todos que veem no poder a única forma de satisfação. Pobres daqueles que confiavam nas palavras desta dupla do mal, formada por Cretina e seu filho Idiota.
Por um tempo Cretina dominou a Casa das Tarefas, local onde os servos e moradores do Feudo buscavam algo para fazer e conseguir algumas moedas para se alimentarem. Assim como ocorreu na Casa dos Doentes e Execrados do Feudo, dominou e controlou a tudo com mão de ferro, mas não com as mesmas sandices cometidas no passado. Desta experiência conseguiu uma maneira de buscar aliados para levar seu filho à Casa Maior do Feudo. Cada vez que um senhor buscava lacaios para uma tarefa, um devedor de favores enviava um pombo correio a sua cabana e ela por sua vez, enviava outro pombo, com a mensagem de que poderia ajudar o tal senhor, desde que a ajuda convergisse na ajuda para levar seu filho a Casa Maior.
Outra vez um dos pretendentes a conquistar a Casa Maior espalhou ouvidores por todo o Feudo, com intuito de saber quem seria o predileto do povo. Cretina ao saber do intuito, reservou carroças, cavalos mancos, jegues, burros e até porcos gordos, levando seus protegidos, devedores, apaixonados e iludidos até o centro do Feudo e em fila, todos ali estavam para dizer ao ouvidor qual a opinião deles sobre quem deveria ser o novo Senhor do Feudo. Percebendo a tramoia venal e ilícita, o ouvidor em questão cancelou todas as audições da trupe dos zumbis de Cretina.
O tempo passava e os comentários na Casa Maior davam conta de que Idiota não teria os pés lavados e nem vestiria a túnica branca que o simbolizaria como sendo o indicado a suceder o Dono do Feudo. Cretina não se conformava com a ideia e percorria a Corte de Pinheiros nos seus quatro cantos; da Serra do Boi Chifrudo a Cachoeira da Traíra Sangrenta, passando pela Grota da Xavana Vermelha até as Campinas do Veado Barbudo. Na insensatez da sua loucura, chegou a espalhar que o Dono do Feudo deveria indicar o seu filho Idiota, pois tinha segredos que colocariam o senhor maior em situação constrangedora. Em suma, “ela tinha o Senhor do Feudo na palma de sua mão”.
O tempo continuava passando, as luas iam e vinham, os meses findavam e as chances de Cretina tomar lugar na Casa Maior reduziam, o que lhe causava desespero, ansiedade, pavor e agruras sem fim. Há quem diga que tentou, no Burgo vizinho, uma revolução para tomar Misericórdia dos Pinheiros e entrega-la ao vizinho, que daria a Idiota, o comando do lugarejo até que o povo decidisse sobre o novo dono, que na concepção psicopática dela, seria o seu amado filho.
Mas nada dava certo nos planos de Cretina que via os seus sonhos esvair-se de suas mãos, lentamente, pedaço por pedaço, gota por gota. O Senhor do Feudo por sua vez, ratificava a ideia de que não iria mais comandar o Feudo, tratando apenas da Madeireira “Machado do Fio Cego” e da frota de barcos “Não quero Palhaço ou Traíra, apenas Robalos”.
Enfim era chegado o momento. Depois de muita apreensão, de muito esperar, aguardar e ansiar, o Senhor do Feudo iria anunciar quem teria os pés lavados e vestiria a túnica branca, como forma de dar continuidade a sua linhagem de Donos do Feudo de Misericórdia dos Pinheiros e antes de anunciar o proprietário da Casa Maior mexeu com as cartas do baralho. Em separado, reuniu-se com Idiota e explicou-lhe as razões da escolha. Para o Senhor do Feudo Idiota era imberbe demais para assumir a Casa Maior, mesmo aparentemente sendo querido pelos servos e lacaios do Feudo e vendo isso, ofereceu a ele ser o segundo Senhor do Feudo, mais algumas moedas de prata como forma de compensação.
O tempo fechou em Misericórdia dos Pinheiros. Raios, Trovões, Relâmpagos, Chuvas intermitentes surgiram no céu do lugarejo. O Rio CaradePau teve uma vazão inexplicável, deslizamentos ocorreram na Serra do Boi Chifrudo e a Cachoeira da Traíra Sangrenta secou de uma hora para outra e as Campinas do Veado Barbudo tornaram-se desérticas por alguns dias. Momentos apocalípticos eram previstos para as próximas luas. Um teatro passou pelos olhos de Cretina que viu todos os seus sonhos desmoronarem como um palmito velho.
Ao final Cretina desmanchou-se em lágrimas. Seus desejos de morar na Casa Maior, desfrutar da criadagem, dar ordens aos serviçais, desfilar pelos corredores do lugar mais importante do lugarejo e sentir o poder sob seus ombros foram escapando por entre seus dedos. Triste fim de uma psicopata que desejava fugir da vida paupérrima de mulher de lenhador e cuidadora de cabana, que admirava as montanhas de dia e o rio brilhante a noite. Triste fim de Cretina que ria aos cântaros e não entendia, quando ouvia que Greta Garbo acabou no Irajá. Triste fim de Cretina que entendendo tudo nem no Irajá terminou.